A ambiguidade da forma ou a matéria empolgada
A ambiguidade da forma ou a matéria empolgada
A expressão natureza da arte gera desconfiança não é de hoje. Talvez a palavra natureza seja o seu componente mais problemático, pois ela pode significar comumente o seguinte: um conjunto de propriedades formais específicas e necessárias para a definição de certos artefatos enquanto obras de arte, elencadas a partir de um critério fora da história.
Entretanto, a exposição Carne Viva – Ambiguidade da forma, nos oferece a oportunidade de revisitar essa expressão e retomar sua pertinência. A partir das poéticas de Washington Silveira, Hugo Mendes, Eliane Prolik, Cleverson Salvaro, Cleverson Oliveira, Cíntia Ribas e Carina Weidle, a referida expressão só pode funcionar para marcar a fuga de definições unívocas e perversas da arte e da vida. Em vez de classificar os trabalhos mediante suas propriedades formais ela descreve sensibilizações e sentidos possíveis, mas que escapam às determinações corriqueiras. É também esse o efeito da ambiguidade, cujo ânimo percorre com semelhante viço as palavras de Arthur do Carmo, organizadas em verbetes distribuídos no decorrer da mostra. Essa maneira de passar ao lado do hegemonicamente aceito como lógico ou óbvio não é exatamente produto de gênios transcendentes, mas de operadores da própria história vivida.
Em alternativa à reiteração do pressuposto, uma sensibilidade para as perturbações e limites do convencional é preferível. Às promessas progressistas propulsoras de ações alegadamente positivas se opõem a normalização da espécie humana enquanto fundamentalmente destrutiva. Ser não convencional é discordar de ambos e concordar, em parte, com ambos, recusando simplificações excessivas. Assim, concebe-se a ambiguidade das situações e respostas fáceis à problemas complexos são evitados. Não se trata apenas de opor à positividade uma dimensão negativa, mas de suspender a oposição, encontrando o ponto de dissolução de contrariedades tão fundamentais quanto aquela da vida e da morte.
Também os participantes da exposição Carne Viva parecem comprometidos com o adiamento dos marcadores culturais privilegiados na definição da experiência e dos seus objetos, no sentido imaginado por Marcel Duchamp. Este importante artista francês propunha atrasar deliberadamente o significado corriqueiro das coisas, inclusive da arte. A defesa do retardare se conecta à noção de coeficiente artístico, igualmente elaborada por este que foi o mais famoso e polêmico precursor da arte contemporânea. Para Duchamp, tal coeficiente seria resultado não apenas das intenções do artista, mas das consequências não intencionais, observadas pelo público quando diante da arte[1]. Aqui, algo com a mesma vontade se prontifica, como o efeito de um feitiço.
Hakim Bey, notável anarquista e pirômano certa vez escreveu: o feiticeiro é capaz embriagar-se simplesmente olhando para a água[2]. Portanto, é diferente do bruxo, capaz de capturar e controlar a substância através de palavras mágicas. Em vez disso, o feiticeiro não fala nada, mas brinca na ausência das palavras, ampliando o ponto onde sujeito, objeto e ambiente são uma só mancha. A embriaguez marca o abandono da vontade de determinação e autodeterminação, em favor de um fluxo total pleno de vida. Embriagar-se é dissipar-se na complexidade, é suspender a distância entre o sujeito e substância, assim como o bêbado é indiscernível da bebida no seu sistema. Se essa metáfora for transposta para uma base fenomenológica, ela pode ser o modelo para uma sensibilidade de suspensão das categorias e separações fundamentais entre psique e ambiente externo. Tal rara possibilidade de experiência nos entrega uma promessa inobjetável: da simples, mas nunca simplória, capacidade de admirar-se enquanto experiência da vida plena. Uma capacidade acompanhada necessariamente de uma humildade fundamental resultante da consciência da incapacidade de determinação individual.
Parece ilógico relacionar a herança de Duchamp com o romantismo patente do parágrafo anterior, entretanto o seu legado diz respeito justamente aos equívocos da racionalização, da atribuição de sentidos, significados, lógicas. Por isso mesmo, em um canto empoeirado e esquecido da ironia e do cinismo, a possibilidade de encantamento aguarda à espera de um olhar atento. Nesse caso o ready-made trata também de um reencantamento do banal, ainda que não por meios sagrados, mas por deslocamento de contexto e sentido. A irreverência dessa operação foi muito bem capturada em um primeiro momento por Jasper Johns e Robert Rauschenberg, e por figuras emblemáticas, como John Cage, Merce Cunningham, Andy Warhol, Claes Oldenburg, Dan Flavin, Donald Judd, entre muitos outros.
No Brasil o debate acalorado entre concretistas e neoconcretos é virtualmente encerrado pela recepção da Pop Art. A compreensão da Pop enquanto alternativa restante diante das promessas quebradas do racionalismo tecnicista apaga as diferenças fundamentais entre o diagnóstico de contexto de Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica, por exemplo[3]. Os trabalhos de ambos continuam distintos, mas partem do mesmo lugar base. O ocaso do paradigma moderno faz emergir o paradigma crítico no qual a questão sobre a natureza da arte exige contabilizar o contexto cultural e social de sua produção e do encontro entre trabalho e público. Além disso, impõe o mesmo quando se pretende considerar e analisar a arte anterior. Segundo Cordeiro, na nova situação, o problema é saber se há alguma diferença entre arte e outras produções sem intenção artística, pois ambas são montagens de coisas e valores.
A saída do dilema estaria na utilização dos meios artísticos para empolgar a materialidade, transformando a banalidade em signos improváveis. Essa chave de leitura pode descrever os Amazoninos, de Lygia Pape, as fachadas, de Alfredo Volpi, os Objetos Caipiras, de João Ozorio Brzezinski, e assim por diante. Ela é uma noção que ajuda a compreender vivamente uma das principais características da cultura brasileira, resultante da imposição ou sobreposição um tanto arbitrários da cultura extrativista colonial, da cultura da corte portuguesa, e depois de uma cultura industrial forjada nos centros globais do capital, a matrizes pré-existentes, opondo dinâmicas colonizadoras às dinâmicas locais. A catástrofe do garimpo ilegal contra a floresta, e o genocídio do povo Yanomami são capítulos recentes dessa guerra. Não obstante, suas batalhas são travadas também na sútil penetração capitalista, através de seus produtos e a massificação das suas tecnologias aplicativas. Cada desejo de consumo de necessidade fraca, cada mercadoria disfarçada de novidade cultural, artificialmente atrelada ao modelo de boa vida democrática, recebidos com despreocupação, reitera esse dilema.
A própria urbanização pede por soluções técnicas garantidoras do seu mínimo funcionamento, assim como o agronegócio também se expande com igual auxílio da tecnologia. Além disso, o modelo do trabalho enquanto sacrifício se presta, tanto nos centros urbanos, quanto nos grandes latifúndios, à acumulação de capital e à aquisição de produtos e serviços sinalizadores de uma aristocracia de consumo. Estamos submersos em tais dinâmicas e, ao mesmo tempo, tudo isso convive com uma acachapante desigualdade social, precarização do trabalhado e até mesmo escravidão. Se as cidades inteligentes despontam no horizonte, provavelmente nosso país não será o primeiro, mas também não será o último laboratório dessa mais recente colonização. A ameaça das cidades inteligentes reside na transformação do cidadão responsável em consumidor perfeito, em um indivíduo cerceado pelo controle vigilante do estado, ou uma combinação nefasta de ambos. Nesta barganha pelas comodidades do consumo o prejuízo para a democracia é evidente: a vigilância do poder pelos populares tende a perder espaço para a vigilância extensa dos indivíduos pelos poderosos.
Entrementes, existem oportunidades para outros desfechos, pois quando deslocamos uma ideia do seu contexto original, encontramos os seus limites convulsivos. Em certo sentido, a colonização é exatamente o deslocamento de uma noção de civilização e de desenvolvimento de um lugar para o outro. Com isso, inclusive o modelo de produção de riqueza e prosperidade é deslocado. Em grande medida, um modelo patrocinado por dinâmicas de colonização, imperialismo e expansão territorial. Por isso mesmo, semelhante processo se repete no Brasil contra a Amazônia e contra os povos originários, como se repetiu na conquista do oeste americano. Entretanto, as dinâmicas capitalistas se aprofundam e se diferenciam a partir de nossa própria realidade. Se somos o país do futuro, dirá Paulo Eduardo Arantes, não é exatamente porque nosso destino é o patamar de riqueza dos núcleos globais orgânicos do capitalismo, mas porque o centro se aproxima cada vez mais da precariedade da periferia[4].
Pautas em voga no debate artístico têm o mérito de denunciar esse processo, mas correm o risco de renunciar à investigação formal de qualquer alternativa, muitas vezes em favor de uma hipertrofia de temas e agendas, em prejuízo da reinvenção do processo a partir do qual, primeiramente, resultam os problemas. Seja na arte, seja na política, não é estrategicamente apropriado passar da necessária crítica aos pressupostos essencialistas e historicistas do formalismo para o cancelamento ou renúncia da invenção formal[5]. Isso apenas garante que as únicas alternativas sejam as parcas existentes, ou àquelas novidades patrocinadas pela ideologia hegemônica, que jamais abandonou tal tarefa. Além disso, deixar em segundo plano a invenção formal pode produzir uma crítica mais amena da própria forma, pois os substratos técnicos e as convenções formais não são entidades neutras e, com frequência, as suas constituições ideológicas são suficientemente fortes para que não sejam desarticuladas através da simples apropriação. As narrativas pressupostas herdadas, cujo desfecho não se qualifica senão pelo advérbio fatalmente, sobrevivem em grande medida através dos meios e formas consagrados. A repetição deles assegura ou pressupõe a continuidade dos rituais da doutrina vigente.
Reunidas essas peças, o quebra cabeça parece mostrar uma imagem niilista de futuro. Entretanto, a penetração de tais lógicas não se impõe sem resistência. Neste momento histórico de escassa imaginação política é impossível negligenciar em absoluto e de imediato ao modelo ocidental, mas é nossa tarefa notar a tensão constante na admissão da ordem capitalista nas margens do sistema global. Prestar atenção nos descompassos desse processo permite ver além das bordas da imagem montada pelas peças já conhecidas e transmitidas como coisas já prontas. Essa atenção pode se desdobrar em uma meditação sobre a especificidade do nosso contexto.
Caso pensem nesse dilema como distante dos poderes da arte, e estranho ao debate da forma em arte, enganam-se. O exemplo convocado por Waldemar Cordeiro é cristalino: a arte é dilema semelhante à insólita presença de um Cadillac no meio da Amazônia[6]. O dilema é mais profundo quando assumimos que a floresta não é só mato. Ou seja, que ela não é apenas caos a espera de ordenação humana. Nesse caso, há um choque de matrizes, e uma transformação. Não obstante, a maior tragédia talvez seja assegurada por uma ordem hegemônica que já nos chega mundializada e descolada de qualquer substrato construtivo e progressista, desvinculada de qualquer visão ou projeto futuro. Então a sua pior versão é imposta com violência e sua instituição e adaptação local não faz par com a civilização, mas com a barbárie. Na prática, resulta no extermínio e na aniquilação das culturas locais. Contudo, se a arte e os artistas não são deflagradores diretos de tal processo, qual seria a contribuição da prática artística diante disso?
O exemplo anedótico de Cordeiro complementa a sua fórmula, pois se arte empolga a materialidade usando os seus meios para tal, não é especificamente com eles que ela anima as coisas. A arte empolga a materialidade com as tensões implícitas na cultura. Isso pode ser alcançado com a ajuda de seus meios, mas também com meios apropriados de outras atividades. Em suma, bons trabalhos de arte são animados por uma força presente também na vida. A diferença é que na arte estas vontades estão explícitas, convocadas para a cena, ficam disponíveis tanto à crítica quanto à admiração. Isto é, a arte se presta a produzir uma admiração crítica diante de certos dilemas que nos são comuns. Faz isso investigando matrizes específicas, ou confluindo matrizes comumente consideradas distintas. No caso da cultura brasileira, as matrizes coloniais também já se constituem como discursos especialmente disponíveis à crítica, pois são modelos deslocados do seu centro de origem e tornados periféricos. Semelhante deslocamento ideológico provoca uma contraintuitiva fragilização da suposta universalidade da ideologia dos colonizadores, pois o seu choque com a situação local obriga ou a revisão, ou a reiteração forçada, não orgânica, das suas intenções. Sabemos muito bem qual destas alternativas prevalece e que o uso da força é sinal de um poder frágil.
A meditação, reflexão ou crítica a esta situação é também um papel disponível aos artistas comprometidos com a invenção da forma. Todavia, isso não implica a elaboração de teorias sociais e culturais complexas. Ela pode ser simplesmente intuída nas pequenas situações cotidianas. Nos pequenos objetos, nos novos materiais e processos industriais que ingressam no nosso convívio e nos ofícios tradicionais, cuja prática resiste até mesmo à codificação digital das esferas da vida contemporânea. Assim, a agudeza de um “Objeto Caipira” de João Osorio Brzezinski captura também as tensões da cultura e da sua formação. Estes trabalhos nascem influenciados por uma cena do documentário Mondo Cane, que mostra uma exposição dos Novos Realistas Franceses[7]. Lançando mão de embalagens de produtos industriais e tecidos do tipo Chita, Brzezinski realiza um encontro entre a informação acessada no documentário e o que recolheu do seu próprio cotidiano. Desse modo, reencena a dinâmica geral da cultura, mas substituí a violência pelo cuidado e pela atenção sensível a porções da vida diária e da sua realidade social.
Essa digressão serve apenas para indicar que os trabalhos da exposição Carne Viva são também exemplos de matérias empolgadas por tensões geradas no encontro de matrizes culturais distintas. Nesse jogo, zonas sensoriais e semânticas invisíveis aos processos de modernização, ignoradas pela industrialização, fora da lógica do capital – matrizes de costumes e afetos marcados por um senso de comunalidade – podem ser acolhidas enquanto indispensáveis à experiência do sujeito. Ao mesmo tempo, matrizes industriais, comerciais e artísticas são reconsideradas, deslocadas e abertas a uma renovada possibilidade de sensibilização.
Pensando assim, podemos reconhecer nos objetos estranhados e teatrais de Washington Silveira traços de um cinismo Pop bem-humorado, mas que denuncia um silêncio incômodo e uma imobilidade ou lentidão, incongruente com a velocidade do capital em rede pós-industrial. Não à toa, a referência à música aparece em vários de seus objetos, compostos como imitações quase delirantes de instrumentos musicais de uma mudez persistente. Em outros casos, caramujos agigantados e impassíveis se prendem à parede, numa inação ou ação iminente, mas sem vigor ou violência. Algo similar acontece com o trabalho Depois do Incêndio (2007-2022), que na exposição é composto de palitos de fósforos aparentemente já riscados e queimados, de escalas exageradas. Os três palitos repousam, dois no chão e outro na parede, enquanto restos de uma ação. Trata-se, na verdade, de uma encenação do anteriormente jamais deflagrado. Nos entrega assim alguma coisa entre o mal-estar pós clímax e a sensação de fascínio pelo faz de conta.
Enquanto isso, as peças de Hugo Mendes remetem a seres vivos do ecossistema local e a partes de corpos sexuados e ambíguos. É possível perceber um ressoar surrealista, não exatamente pictórico, mas antes como uma digestão de George Baitaille. Nesse caso, partes do corpo se repetem, em formato ou escala, e como fragmentos destacados, desidentificados com sua origem, tornam-se objetos autônomos e independentes. A forma humana geradora das obras fica mais ou menos abafada, a depender do caso, e devires animais e vegetais são mais ou menos proeminentes, ancorados quase sempre na topologia de uma morfogênese metaforicamente sugerida ou processualmente imitada, como no caso das peças da Série Casa de Marimbondo/Transições (2018). Na sua maior instalação, no centro da exposição, o artista usa um painel expositivo desmontado, remanescente da mostra anterior, cuja dissolução é encenada e exposta. Essa operação tanto contextualiza o campo da instalação de suas peças, quanto resulta do mesmo ímpeto de produção de reminiscências, similar aquele presente nos demais trabalhos de Mendes.
Em diálogo com ambos, as gravuras solares e as cerâmicas e peças de Carina Weidle conseguem reunir sugestões surrealistas e dadaístas em cenas inusitadas com títulos sugestivos, ampliando o sentido dos trabalhos. O bom humor recupera algo da pequena tragédia do cotidiano e dos acontecimentos sem significado que unem boa parte de nós. Existe na sua poética um jogo de variação de escalas. Alguns trabalho de menor tamanho se apresentam enquanto considerações conceituais da própria escala, como é o caso do trabalho Amanhece Logo (2013) e das suas gravuras solares. Outros, em escala de 1:1, como Guarda-pertences (2016-2022), convocam antes a consciência corporal do observador no espaço situado. Suas operações anunciam ainda o parentesco pictórico de sua pesquisa, cuja materialização, intencionalmente ou não, ressoa dinâmicas tradicionais da pintura enquanto arte. Dentre elas destaco a presença de procedimentos aditivos e a constituição de cenas ou cenários, que muito embora sejam operações comuns a diversas linguagens, podem ser caracterizadas enquanto própria de um ofício de pintora. A franca, embora não irrestrita, aceitação do inesperado dentro do próprio processo, e da experimentação com os materiais, é também uma pista da genealogia moderna da sua prática, mas que vem certamente envolvida pelo seu interesse em novos materiais, em parte informada pela Arte Povera[8].
Semelhante aceitação do que se oferece também perpassa a poética de Cleverson Salvaro, que transporta um canto mofado para dentro do museu. A peça de resina é a captura das superfícies do encontro de duas paredes com o teto. Essa operação de deslocamento de vestígios de um lugar para outro está presente ainda em diversas das suas peças selecionadas para a mostra. Um procedimento acompanhado da presença inconteste de um certo rigor construtivo vacilante, ou como dirá Hélio Oiticica, de uma vontade construtiva geral. No caso de Salvaro, este ímpeto é geralmente precário, propositalmente desarranjado ou concretizado através materiais conversores do rigor em malemolência. Essa dialética também move o projeto especial realizado para a exposição, chamado Produção Local (2022). Nele o artista constrói uma espécie de estufa microclimática dentro da sala, implodindo também a distinção entre trabalho artístico e dispositivo expositivo.
Eliane Prolik apresenta uma série de esculturas de cobre com dimensões que também acionam o espaço, e um grande painel composto de um bastidor de aço inox e bolsas térmicas. O painel encontra boa parcela do seu nexo na sua instalação. A peça explora uma construção que incluí o ar, concedendo ênfase ao atravessamento do olhar e não exatamente na constituição de um anteparo opaco. A despeito da distância temporal entre tais produções, ambas parecem convergir mediante a reconsideração crítica do caráter construtivo da cultura. Tais trabalhos se colocam em um lugar fenomenologicamente suspenso, de modo que a entropia dos materiais pode ser em grande medida desconsiderada. Mas a forma que resulta da construção geralmente tensiona a ordem pressuposta enquanto definitiva. Nos trabalhos de cobre a suspensão da função e a contradição da forma destacam o impasse enquanto principal sensação. O trabalho Remo Infinito (1997), por exemplo, explora o caráter do signo do infinito, que ressoa a fita de Moebius, Max Bill e Lygia Clark. Não obstante, também subverte a noção do remo como uma ferramenta propulsora, entregando a imagem que é só cabo. Convergem Uma faca só lâmina[9], de João Cabral de Melo Neto e Antes de um braço quebrado[10], de Duchamp, em uma metáfora que parece atualizar o mito de Sísifo. Para completar, a incongruência funcional da Boia de Sobrevivência (1996), cujo peso promete antes afundar o náufrago, reitera a lógica presente nas bolsas térmicas no painel Vital Force (2022), cujas formas de torsos humanos pesam em uma corrente tensionada. O rigor construtivo, e a repetição esquemática tem como contraposto uma moleza semelhante àquela das redes de dormir, que se deixam ao ar.
Em conjunto, Salvaro e Prolik realizaram ainda a instalação Repente (Banquete) (2022), elaborada especificamente para o saguão adjacente à entrada da exposição. O trabalho é principalmente composto de um conjunto de objetos construídos com manilhas, chapas, tubos de aço. Uma variedade de utensílios domésticos e instrumentos e objetos cotidianos, convida o público a fazer barulho, expandindo a peça através do som, para além do rigor dos seus componentes construídos. A participação dos visitantes intensifica e amplia a intervenção espacial do trabalho, através do som propagado na matéria, nos corpos.
Os caminhos comuns da construção e da entropia, do o rigor do artifício e da materialidade volátil e evanescente também comparece nos trabalhos de Cleverson Oliveira. O artista alcança a tradição neoconcreta brasileira, das obras moles e sedutoras pela sua própria materialidade, mas também ressoa algo da Arte Povera. Em um dos seus trabalhos, peças de mármore sobrepõem pastilhas de naftalina. O mármore, tradicional na escultura, cuja baixa entropia encarna o caráter de eterna permanência próprio do ideal clássico de arte, é contraposto à naftalina, volátil material, cuja própria forma se desmancha no ar, impregnando a sala e expandindo a escala percebida dos trabalhos, colapsando os seus contornos no invisível. Ao mesmo tempo, a simulação comparece em trabalhos construídos com material mole, na configuração de casulos. Sua aparência pode causar a sensação de que uma criatura está prestes a eclodir, ou que a presa de algum predador aguarda a oportunidade de tornar-se uma refeição futura. Assim, a materialidade e ao ímpeto construtivo se reúne com universos narrativos, cuja capilaridade na cultura cinéfila, ressoa, a meu ver, os trabalhos de David Cronenberg e David Lynch. A apresentação dos Cabeções/Cleverheads (1998-2017) sobre uma mesa, protegidos por uma redoma de vidro, e os trabalhos em papel, Colônia 1, 2 e 3, que simulam textos corroídos por traças, completam a presença desta poética na qual a ilusão e a encenação competem com o comportamento próprio dos materiais empregados.
O pressuposto significado de um material colocado em cena ou a vontade própria e autônoma de um protagonista, que atua como se estivesse participando de uma história cujo motor é sua própria disposição, está quase sempre de acordo com a constituição da cena mesma, enquanto enquadramento limitante da moral da história. No limite da dissolução desse acordo se situa o procedimento responsável por reunir os componentes dos trabalhos de Cintia Ribas. A operação da artista, por um lado, produz cópias da própria mão em posições aleatórias, por outro, empresta animais taxidermizados do Museu de História Natural do Capão da Imbuia, e num terceiro movimento, negocia o encontro dos dois, em um drama montado por imagens copiadas de mãos humanas e corpos animais ou partes de corpos animais, tratados enquanto imagens. Uma dialética entre o fantasma e o cadáver, cuja sutileza produz uma ambivalente sensação de intimidade afetiva capaz de ecoar alguns dos mais terríveis acontecimentos atuais.
Tudo considerado, é preciso fazer a seguinte ressalva: as impressões acima não resumem nem esgotam os trabalhos. A análise até aqui desenvolvida configura um mapa em baixa definição de algumas das matrizes reconhecíveis na exposição Carne Viva. Essa cartografia não pretende localizar os trabalhos enquanto derivados, ou pior, tributários dóceis da arte produzida junto aos centros do poder. Nem a intenção é usar os trabalhos enquanto ilustrações de um partido, mas apenas enfatizar o encontro do contexto local com debates sobre arte nacionais e internacionais, compreendendo como resultado dessa relação uma peculiar produção capaz de, simultaneamente, contar uma história que é nossa e do nosso contexto, e participar ativamente da grande conversa do mundo. Lembro-me repentinamente de Constantin Brancusi, como um ícone do encontro da estética e cultura industriais com a carpintaria tradicional romena[11]. Do mesmo modo, as matrizes mais convencionais ao campo da arte e da cultura aqui citadas, congruentes ou não com a emergência de uma cultura industrial moderna, e com a cultura emergente junto à lógica atual do capitalismo, certamente são atravessadas por peculiaridades do contexto imediato e da vida subjetiva de cada um dos artistas dessa exposição.
Mas o global e o local não acontecem como opostos e o determinismo das consequências da cultura capitalista deve ser relativizado. Não obstante, a capacidade de ação subjetiva livre e espontânea, e da produção artística inaudita, ainda apresentam limites. Ou seja, não estou supondo sujeitos cuja agência têm origem em uma essência própria, fora da história, tampouco suponho os processos históricos, mesmo aqueles capazes de caracterizar discursivamente determinado paradigma, enquanto totalmente responsável pela constituição das realidades subjetivas. A tentativa é apenas de indicar a complexidade desse processo do ponto de vista da sensibilidade artística, enquanto uma oportunidade para que aspectos ou matrizes culturais quase esquecidas encontrem espaço de difusão na esfera da reflexão pública e no campo dos afetos compartilhados, com sorte a partir de uma configuração que reúne o melhor dos mundos.
Na prática, isso implica que os artistas não apenas empolgam a materialidade com uma sensação de vida, mas são empolgados por materiais, acontecimentos ou eventos, que podem ser sensíveis ou semânticos. O supracitado estado de embriaguez é um modelo possível. Trata-se, contudo, de uma embriaguez não apenas fenomenológica, mas também com o mundo, com a linguagem, com a cultura. Conceitualmente, se a arte nos gera algo de admiração é porque nos comove, ou melhor dizendo, comove-se conosco, pois temos a impressão de que nossa percepção se move junto com o trabalho. Tal movimento sincronizado pode reafirmar nossas posições ou crenças, mas pode sobretudo ser uma oportunidade de mover o pensamento e cultura de modo a descrever outras trajetórias, talvez menos violentas e apocalípticas.
Foi em parte essa ambivalência própria da cultura o principal sentido do dilema que o texto de parede da exposição aborda. Refletir acerca da expressão Carne Viva faz perceber uma ambivalência: por um lado, existe uma alusão à alma, aquilo que anima, transcende e não tem tamanho; e por outro, trata-se de uma carne que vive. Enquanto alimento, carne também pode referir-se ao frequente papel de força ativa de sujeição à morte desempenhado em vários níveis pela nossa espécie. Ou seja, não apenas contamos no estofo visível, mas participamos da substância viva e da destruição dela. Tragicamente, também nós nos reconhecemos enquanto corpos sencientes e mentes consistentes da finitude. Essa ambivalência indica tanto a nossa participação em um processo que nos ultrapassa, quanto a nossa limitada existência e inevitável passagem à condição de pedaço de carne. Um destino possível, cuja infrequente ocorrência muito admirava o artista Francis Bacon[12].
Assim, a expressão Carne Viva indica o forte laço entre vida, morte e cultura. Muito embora a cultura seja capaz de gerenciar a vida e a morte, normatizando o destino de determinadas presas enquanto refeição dentro de um ciclo sustentável, também sabemos o quanto a cultura pode ser predatória com relação à vida em sentido amplo. A capacidade de conviver com tal enigma talvez seja o caráter distintivo do nosso tempo, ou não.
Não obstante, a expressão Carne Viva também consiste em outra maneira de escrever o conceito de matéria empolgada de energia vital, ou percebida enquanto viva. Descreve, portanto, a possibilidade ainda de um encantamento da experiência de mundo junto ao paradigma crítico contemporâneo. Pois, a respeito da vocação das poéticas aqui reunidas, parece lícito dizer que estendem a mão na direção da vida sem forma, mas tocam na questão das formas de vida. Esse tato sinaliza uma peculiaridade: os trabalhos em exposição podem até se comportar enquanto objetos para o olhar, mas então se revelam armadilha. Eles nos capturam na intrincada teia de um dilema maior. A tarefa deste texto é espreitar tal dilema.
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[1] TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
[2] BEY, Hakim. CAOS – Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.
[3] Sobre essa questão ver os textos Realismo: “musa da vingança e da tristeza” (1965), de Waldemar Cordeiro e Esquema Geral da Nova objetividade (1967), de Helio Oiticica, ambos em FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de Artista: Anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[4] Ver ARANTES, Paulo. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização. São Paulo: Editora 34, 2023.
[5] Ver SAFATLE, Vladimir. Força e Abstração: Processo Revolucionário e matriz estética da autonomia. Revista ARTEFILOSOFIA. V. 15, nº29, setembro de 2020, p.165-193. Disponível em:< https://periodicos.ufop.br/raf/article/view/4457> Acesso em 27 mar. 2023.
[6] Ver CORDEIRO, Waldermar. Realismo: “musa da vingança e da tristeza”. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de Artista: Anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[7] Sobre isso ver FARIAS, Agnaldo. Luz ≅ Matéria (Matéria). Google Arts & Culture, 2017. Disponível em: <https://artsandculture.google.com/story/ogVR7PrmNAPiIw?hl=pt-BR>. Acesso em 26, mar. 2023.
[8] Arte Povera pode ser livremente traduzido como “Arte pobre” e consistiu-se como um movimento artístico radical italiano que ocorreu da segunda metade da década de 1960 até meados da década de 1970. Foi baseado na utilização de processos não-convencionais e materiais não tradicionais ou inusuais, muitas vezes cotidianos e efêmeros. TATE. Arte Povera. Art and Artists. Art Terms. 2023. Disponível em: <https://www.tate.org.uk/art/art-terms/a/arte-povera> Acesso em 27, mar. 2023.
[9] Uma faca só lâmina (ou: a serventia das ideias fixas) é um poema de 1955 que relaciona uma sensação de falta ou ausência subjetiva com uma faca sem cabo, só lâmina. Ver: SECCHIN, Antonio Carlos [org.]. João Cabral de Melo Neto – Poesia completa. São Paulo: Alfaguara, 2020.
[10] Antes de um braço quebrado (In advance of a broken arm) é um trabalho de arte de Marcel Duchamp, que consiste em uma pá de neve. Sua primeira versão é de 1915, e tem no título original o complemento “(from) Marcel Duchamp”, assegurando que a procedência do sentido do trabalho está nas ações de apropriação e renomeação realizadas pelo artista.
[11] Artista escultor moderno, nascido na Romênia. Viveu entre 1876 e 1957. Sobre a relação de sua poética com a modernidade industrial e com os objetos produzidos em massa ver KRAUSS, Rosalind. Formas de Ready-Made. In: KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[12] Sobre isso consultar SYLVERTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac naif, 2007. e DELEUZE, Gilles. Francis Bacon - Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.
OLIVEIRA, Bruno Marcelino; VOESE, Jhon; et al. Carne Viva: Ambiguidade da Forma. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2022. pp. 108-135.