Fernanda Gomes: exposição como cor
Fernanda Gomes: exposição como cor
1. Introdução
Fernanda Gomes é carioca, nascida em 1960, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Formou-se na Escola Superior de Desenho Industrial da UFRJ, em 1981. A partir da década de 1980 desenvolveu uma poética de manipulação de materiais frágeis, ordinários e elementos transitórios. Em 2019 Fernanda Gomes apresentou exposição sem título na Pinacoteca do Estado de São Paulo, quando ocupou toda uma ala do espaço cultural, correspondente a sete salas subsequentes, com arranjos e objetos também sem título.
A exposição, segundo o seu curador, José Augusto Ribeiro (2019), resulta de um período de 21 dias de montagem, na qual a artista organizou objetos em diálogo com o espaço de exposição. Em consequência desse processo os objetos instalados não são apenas exibidos, mas são exibidas também as relações entre eles e deles com a galeria. Este artigo propõe um dialeto colorista como chave de compreensão destas relações, cujo modo de enunciação se expande para além da variação tonal cromática, combinando também diferenças simbólicas.
2. O cubo branco como lugar da cor
O cubo branco é uma concepção de espaço próprio ao último modernismo, mas também norma das galerias contemporâneas (O’Doherty 2002: 4). É um espaço sem janelas, de paredes brancas, cujo teto transforma-se na fonte de luz. O piso é de madeira polida para que o visitante cause “estalidos austeros ao andar" ou então de carpete, para que não haja ruídos ao se caminhar (O’Doherty, 2002: 4). Ideologicamente é descrito como um lugar privilegiado da experiência estética, que impede a entrada do mundo exterior, ficando suspenso em relação ao espaço tempo da vida cotidiana (O’Doherty, 2002).
No cubo branco, a arte existe em um instante eterno de exposição, que solicita mente e olhos, mas não recebe bem o corpo (O’Doherty, 2002). Assim, o cubo branco supõe toda uma dinâmica de exposição cujo lugar privilegiado é a parede.
Dentre os muitos programas modernos, o cubo branco é especialmente adequado à demanda por autonomia do plano pictórico, sobretudo quando compreendido como uma porção de espaço ótico separado do seu entorno. O privilégio da parede denota o privilégio da pintura e o cubo branco ‘comprime’ o quadro como objeto, na direção da sua concepção de plano delimitado, corresponde a um limite da significação (Damisch, 1984). Este funcionamento do quadro sem dúvida ressoa a concepção de desenho de Leon Batista Alberti, que no seu tratado basilar, Da Pintura, determinou a circunscrição dos limites de uma superfície como uma das principais funções do desenho. Para este renascentista a circunscrição estabelecia a orla das coisas visíveis através do delineamento (Alberti, 2014: ), o qual fechava os limites das superfícies, separando o dentro do fora. Um mecanismo em ação não apenas na visão das coisas do mundo natural, mas também na delimitação do plano da pintura.
Nessa esteira, se os limites do quadro são análogos aos contornos uma forma vista, então as paredes do cubo branco comparecem como o fora necessário para o quadro se apresentar como um dentro. O cubo branco sendo para o quadro abstrato moderno o que a moldura foi para a pintura cuja metáfora é a janela transparente, isto é, um reforço para o insulamento e para a delimitação da superfície de representação. Assim, a produção da idealidade do quadro como limite é ainda hoje questão da prática da pintura (Damisch, 1984), e além disso, também participa dessa produção o espaço de exposição.
A questão do quadro, do seu fim ou sobrevida, marcou a maioria das tendências da pintura abstrata moderna (Bonfand, 1996). A revista De Stijl, por exemplo, fundada nos Países Baixos, cuja primeira edição é de 1917 e a última 1932, e que teve como alguns dos seus principais adeptos os artistas Theo van Doesburg e Piet Mondriam, pode ser definida como uma ideia de integração entre uma linguagem plástica universal e o mundo da vida (Bois, 2009). Uma integração dependente do fim do quadro e de fronteiras disciplinares. Ferreira Gullar (2010) identificou uma tendência à negação do objeto na arte moderna. Primeiro o objeto representado na pintura e depois o próprio quadro como objeto foram alvos de dissolução. Para ele é convencional a suposição de que a moldura e a base determinam o espaço da arte, portanto o desenvolvimento de pesquisas não convencionais em arte implica na eliminação destas estruturas.
Em parcial concordância com as pretensões do De Stijl e com as considerações de Gullar, o artista Hélio Oiticica (1986), escreve em seus diários que o fim do quadro leva ao trabalho com a cor no espaço, que pode ser arquitetônico. Entretanto, divergindo da concepção redutiva da cor do De Stijl, o artista também anotou que a transição da cor do quadro para o espaço permite o “desenvolvimento nuclear da cor” (Oiticica, 2009: 85). Uma pesquisa não mais das regras de contrastes entre matizes diferentes, mas das transformações virtuais de uma única cor, envolvendo a modulação tonal, mas indo além dela, sobretudo ao incluir o tempo da percepção subjetiva da cor, mediada por condições ambientais e pela transitividade do público.
Evidente que corroborar a superação absoluta do quadro seria ingênuo, contudo é inegável que a motivação moderna à abstração e à expansão da pintura no espaço reabriu campos de atuação entre linguagens da arte, fechados pela lógica disciplinar. Os destinos entrevistos por Oiticica para a pintura fora do quadro (sobretudo porque interligam a arquitetura e a exploração das variações perceptivas da cor a partir de uma experiência situada), são apontamentos de agudeza peculiar, pois indicam a impossibilidade do loteamento disciplinar da experiência.
Um exemplo da pertinência dos apontamentos de Helio Oiticica pode ser justamente o trabalho de Fernanda Gomes. É licito dizer que a partir da arquitetura do cubo branco, sobretudo no que tange as suas operações com a parede da galeria, a artista desenvolve aspectos virtuais e perceptivos que Helio Oiticica reuniu no conceito de núcleo da cor.
Sublinho, nesse sentido, que Fernanda Gomes realiza operações ‘com’ a parede, pois a galeria não é apenas palco da ação, mas é inclusa nela. Uma inscrição através de uma sintaxe com a pintura direta na parede e com a instalação de objetos pintados de branco. Sintaxe análoga à do colorido, pois as áreas pintadas e os objetos instalados não comparecem como entidades insuladas, adequadamente delimitadas pelo cubo branco e mostradas por ele em independência das suas cercanias. A parede do espaço expositivo, antes de um ponto de chegada das obras é um material de trabalho, uma área de cor relacional, pois os objetos instalados são dispositivos em diálogo com o espaço da galeria e partilham com ele o protagonismo da exposição.
Nessa montagem Fernanda Gomes trata não só os indícios reais da iluminação expositiva como cor, modulando as passagens entre sombras, reflexos e rebatimentos de luz, mas também simula pictoricamente a incidência da luz sobre o arranjo, entregando um falso índice de projeção luminosa. Luz real e luz pintada participam da mesma escala, neste caso se aproximando, pois a luz rebatida na parede pelo topo da tela encontra-se praticamente na mesma intensidade da projeção de luz simulada pela área pintada.
Embora conexas, essas duas formas da luz funcionam de maneiras diferentes. Enquanto a modulação da luz literal expande esteticamente o trabalho para a parede, a simulação de projeção de luz admite pelo menos dois significados. Por um lado essa simulação dirige nossa atenção para o espaço expositivo, pois ao imitar um rastro de iluminação artificial, indica a galeria como ambiente construído, e o objeto exposto como produto de artifício. Mas sendo a projeção de luz ilusória, a inexistencia da fonte da projeção luminosa falseada acaba redirecionando o visitante ao seu próprio corpo em situação. Em vez de reafirmar o quadro como um lugar metafórico e aceitar qualquer versão do cubo branco enquanto um dispositivo que expulsa o mundo e o tempo da vida, para favorecer uma experiência transcendente, a luz simulada no trabalho de Fernanda Gomes, através de um desengano, indica o aqui e agora habitado pelo sujeito. A partir disso uma parte da arbitrariedade e dos limites ideológicos desse modelo expositivo são descobertos. Por outro lado, em paralelo, já que a luz projetada é simulada, e não havendo origem real desta projeção, então a luz pode ser admitida como imanente ao próprio trabalho – luz própria da cor da pintura, produto da modulação cromática.
As relações (física, fisiológica, simbólica) entre as artes visuais e a luz podem ser óbvias, mas dizê-lo não evita que sejam encobertas pela padronização do espaço de exposição e pela classificação disciplinar. Fernanda Gomes descobre sutilmente parte dessas relações, ao provocar a exposição do que está encoberto na dialética entre quadro e o modelo de espaço expositivo do tipo cubo branco. Ao mesmo tempo que este movimento permite a reflexão crítica, também conserva a contemplação, alocando ambas justamente em percepções que o dispositivo do cubo branco é especializado em suprimir, a saber: no aparato técnico que sustenta o cenário expositivo e nas inconstâncias perceptivas suprimidas ou regularizadas por este mesmo cenário e aparato.
3. Modulações para além das cores
O trabalho de Fernanda Gomes faz da parede cor através da modulação da luz que nela incide e dos seus indícios. Muito embora ativo, esse funcionamento não resulta na completa diluição dos objetos instalados no espaço. A orla dos objetos é frouxa e permeável, mas existente. Ainda há algo de um quadro em diálogo com o cubo branco. A operação análoga ao colorir, quando expandida para a galeria, não sublima as tensões simbólicas no plano estético neutro da cor autônoma. Nos trabalhos da artista, a modulação cromática ultrapassa a função de reunir cores diferentes em um único plano, para ser um método que reúne objetos e parede, realizando passagens entre estes locais de significação.
Podemos perceber tais passagens simbólicas ao compreender que a luz pode ser uma categoria triplamente instanciada nas montagens de Fernanda Gomes. Uma vez como elemento convencional e literal da sala de exposição; outra através de indícios e rastros modulados como cor; e outra ainda, como luz imanente, própria da pintura que a artista realiza sobre os objetos e a parede. Estas instâncias da luz comparecem imbricadas nos trabalhos, fazendo da sua separação uma condição abstrata, estabelecida meramente para fins de análise. O emaranhado complexo destes registros simbólicos da luz não será abordado exaustivamente neste artigo, mas um breve estudo de caso permitirá apresentar uma vaga imagem da sua estrutura.
Na terceira sala da exposição, Fernanda Gomes mostrou um trabalho que consistia em uma tela branca quadrangular, de tamanho médio, da mesmíssima cor da parede, sobre a qual foi pintada uma área de cor branca modulada num tom acima, perfazendo uma faixa do lado direito da tela, e estendendo-se sobre a parede, para além do quadro, até alcançar largura total equivalente à parte da tela que permaneceu da cor inicial (Figura 2). Além disso, essa área também for estendida verticalmente e para baixo, ultrapassando a altura do quadro, até se dissipar próximo ao limite inferior da sombra projetada pela tela na parede. Por fim, a luz rebatida na parede, junto à borda superior da tela, completa o conjunto principal de áreas moduladas.
Nessa montagem Fernanda Gomes trata não só os indícios reais da iluminação expositiva como cor, modulando as passagens entre sombras, reflexos e rebatimentos de luz, mas também simula pictoricamente a incidência da luz sobre o arranjo, entregando um falso índice de projeção luminosa. Luz real e luz pintada participam da mesma escala, neste caso se aproximando, pois a luz rebatida na parede pelo topo da tela encontra-se praticamente na mesma intensidade da projeção de luz simulada pela área pintada.
Embora conexas, essas duas formas da luz funcionam de maneiras diferentes. Enquanto a modulação da luz literal expande esteticamente o trabalho para a parede, a simulação de projeção de luz admite pelo menos dois significados. Por um lado essa simulação dirige nossa atenção para o espaço expositivo, pois ao imitar um rastro de iluminação artificial, indica a galeria como ambiente construído, e o objeto exposto como produto de artifício. Mas sendo a projeção de luz ilusória, a inexistencia da fonte da projeção luminosa falseada acaba redirecionando o visitante ao seu próprio corpo em situação. Em vez de reafirmar o quadro como um lugar metafórico e aceitar qualquer versão do cubo branco enquanto um dispositivo que expulsa o mundo e o tempo da vida, para favorecer uma experiência transcendente, a luz simulada no trabalho de Fernanda Gomes, através de um desengano, indica o aqui e agora habitado pelo sujeito. A partir disso uma parte da arbitrariedade e dos limites ideológicos desse modelo expositivo são descobertos. Por outro lado, em paralelo, já que a luz projetada é simulada, e não havendo origem real desta projeção, então a luz pode ser admitida como imanente ao próprio trabalho – luz própria da cor da pintura, produto da modulação cromática.
As relações (física, fisiológica, simbólica) entre as artes visuais e a luz podem ser óbvias, mas dizê-lo não evita que sejam encobertas pela padronização do espaço de exposição e pela classificação disciplinar. Fernanda Gomes descobre sutilmente parte dessas relações, ao provocar a exposição do que está encoberto na dialética entre quadro e o modelo de espaço expositivo do tipo cubo branco. Ao mesmo tempo que este movimento permite a reflexão crítica, também conserva a contemplação, alocando ambas justamente em percepções que o dispositivo do cubo branco é especializado em suprimir, a saber: no aparato técnico que sustenta o cenário expositivo e nas inconstâncias perceptivas suprimidas ou regularizadas por este mesmo cenário e aparato.
Considerações finais
A continuidadeperceptiva entre os objetos e a parede da sala denota que os artefatos instalados por Fernanda Gomes são moduladores de aspectos fugidios da percepção. Estes eventos perceptivos comumente ignorados são combinados como cores, tendo a sua intensidade e frequência equalizadas mutuamente. Junto a isto a artista também inclui falsos índices de projeção luminosa, literalmente pintados, ajustando eventos luminosos de diferentes fontes materiais e registros simbólicos em uma espécie de escala cromática. A luz do espaço expositivo modulada como cor torna-se metafórica, enquanto o branco pintado promovido como luz é metafórico ao reunir e indicar tanto a luz literal, quanto uma luz própria da cor na pintura. Então a categoria luz aceita interpretações relativas ao trabalho em situação, ao dialeto cromático, aos aspectos convencionais e arbitrários da iluminação técnica do cenário expositivo e aos registros simbólicos da cor autônoma e da luz metafórica da pintura. Sendo assim, a artista faz extrapolar das suas funções estéticas e visuais um método de modulação da luz análogo à modelos tradicionalmente coloristas, permitindo tanto um olhar crítico para a situação, quanto uma postura contemplativa, mas dirigida a aspectos fulgazes do ver.
OLIVEIRA, Bruno Marcelino. Fernanda Gomes: a exposição como cor. In: XII Congresso Internacional CSO'2021: Criadores Sobre outras Obras, 2021, Lisboa. XII Congresso Internacional CSO'2021: Criadores Sobre outras Obras. Lisboa, 2021
Referências
Alberti, Leon Battista (2014) Da pintura. Campinas: Editora Unicamp. ISBN: 978-85-268-1083-9.
Bois, Yve-Alain (2009) A pintura como modelo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. ISBN: 978-85-7827-099-5.
Bonfand, Alain (1996) A arte abstrata. Campinas: Papirus. ISBN: 85-308-0383-3.
Brito, Ronaldo (1999) Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify Edições. ISBN: 85-86374-43-1.
Damisch, Hubert (1984) “A astúcia do quadro”, Revista Gávea. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. ISSN: 0103. pp. 99-109.
Gullar, Ferreira (2010) “Teoria do não-objeto” In Cohn, Sérgio [ed.], Ensaios fundamentais:artes plásticas, Rio de Janeiro: Beco do Azougue. ISBN: 978-85-4920-041-0. pp. 105-109.
Oiticica, Helio (1986), Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco. ISBN: 0000163538.
Oiticica, Helio (2009) “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade” In Ferreira, Glória & Cotrim, Cecília [eds], Escritos de Artistas: Anos 60/70, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ISBN: 978-85-7110-939-1, pp. 82-95.
O’Doherty, Brian (2002) No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 85-336-1686-4.
Ribeiro, José Augusto (2019) “Ação direta” In Gomes, Fernanda, Fernanda Gomes, São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo. ISBN: 978-85-8256-114-0. pp. 137-159.
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