Lugares Insólidos
Lugares Insólidos
Ensina o pai dos burros, que o insólito é aquilo que é contrário ao uso, às regras, inabitual. Sinônimo de anormal, incomum e extraordinário. O insólito, pressupõe um desvio da norma, do comum, do ordinário. Mas pensar nas pinturas de Gruber e Jean Jean como pinturas insólitas pode ser imprudente. Suas pinturas encontram-se justamente na esfera do ordinário: seja pela temática, seja pelos procedimentos. Alguém poderia argumentar que das coisas mais ordinárias os artistas extraem o extraordinário, que no habitual encontram o inabitual. E isto pode ser plausível para todos aqueles capazes de definir o ordinário e o habitual. É razoável convir, muito embora o conservadorismo de costumes se aprofunde no Brasil, que não devemos nos furtar ao fato de que a normalidade foi posta entre aspas já faz algum tempo. Por outro lado, é igualmente problemático pensar no comum como cultura de massa, pois incorre-se no risco de uma possível assimetria valorativa e, mais ainda, porque há de se convir que as fronteiras entre cultura de massa e a arte já não exibem nitidez aparente capaz de sustentar esta oposição.
Já o insólido de nosso título se trata de outra coisa. Antes de mais nada, devo preveni-los de que não se trata de um trocadilho raso. Resisti inicialmente ao termo por causa dessa impressão, mas me permiti o seu emprego, sobretudo porque ele não é gratuito e é isso que tentarei explicar nas próximas linhas.
Para Bauman a modernidade teve como seu principal passatempo liquefazer as coisas, de modo que a modernidade líquida já não conforma padrões que podemos usar como pontos estáveis de orientação. Para o autor, muitos conceitos e instituições que regulavam as sociabilidades são hoje conceitos-zumbis, porque já não estruturam a vida social. Sobrevivem como inconveniências. Será a arte um conceito-zumbi? Segundo Lorenzo Mammi, a arte é um estorvo necessário. Mas o que isso significa?
Baudrillard entende que a arte perdeu sua capacidade de ilusão e tornou-se completamente transparente: um signo como qualquer outro, quando deveria fazer surgir um vazio através do signo, em vez de um significado. Para ele a arte recente tornou-se publicitária. A arte não é mais um estorvo: flui desimpedida no fluxo de informações cotidianas. Já as pinturas de Gruber e Jean Jean são interessantes porque têm vontade de ser arte, ainda que com timidez. O insólido não se trata de algo sólido nem tampouco de um líquido, mas de uma existência não sólida – de um vazio de significação. Aqui está o verdadeiro trocadilho: o título não se refere as pinturas como representação de fluidez, liquidez e fluxo, nem tampouco como representações de lugares. Trata-se de pensar a arte como o lugar do vazio da significação.
As pinturas de Gruber e Jean Jean têm a disposição de perseguir este vazio, que encontra sentido na ausência. As coisas que nos olham, para Didi-Huberman, são aquelas as quais é impossível possuir, pois tem aura, que é conjunto de imagens evocadas à memória pela experiência. Segundo o autor, a metáfora de Walter Benjamin é que elas não seguem o fluxo do rio, mas são um redemoinho que perturba e resolve o leito, e que traz para a superfície seus sedimentos. A ausência está no olho do redemoinho, cercada por um turbilhão de memória.
Olhando para os trabalhos de Gruber podemos ver imagens de Volpi, Paul Klee, Sonia Delaunay, Gaudí e Djanira. Uma arte que faz redemoinhos no rio da história. Não é novidade pensar nessa estratégia. Ela já é bem conhecida. Com efeito, o que Gruber e Jean aprontam é o que Benjamin Bunchloh observa acerca dos trabalhos de Isa Gensken: evocam epistemes contraditórias para um mesmo jogo. Mas é preciso ficar atento, pois esta não é uma estratégia de autoridade, ou melhor dizendo, não deve ser, pois caso seja, será meramente publicitária, meramente recuperatória, meramente reciclagem, como acusa Baudrillard. Para não ser, é preciso que com isso faça “surgir o Nada na potência do signo”.
A pergunta que me coloco é justamente essa: As estratégias destes jovens artistas são capazes de abrir um vazio a partir dos signos que eles convocam? Isto é: O redemoinho que começam tem no seu centro um vazio? Se eles encontram uma contingência de padrão profundo, ou se apenas surfam na superfície do fluxo ininterrupto de informações e imagens cotidianas, eis a questão fundamental. Como tal, não existe para ser respondida. Nem Gruber nem Jean Jean podem respondê-la. Não é uma pergunta difícil. Ela é uma pergunta a qual ninguém tem capacidade de responder, pois é endereçada ao futuro. Devemos olhar para os trabalhos destes jovens artistas como justas tentativas de fazer arte, cuja pertinência poderá sentir-se em décadas distantes.
Todo dia, na prática e na crítica da arte, damos saltos de fé, como certa vez sugeriu Steinberg. Alguns transformam saltos de fé em saltos de carreira. Outros ficam só com o segundo. Não há nada que garanta isonomia entre eles ou o contrário. Não há nem critério infalível para saber da diferença ou coincidência entre os dois. Para tudo isso há exigência de distância. Penso que é preciso, portanto, que recuperemos alguma perspectiva histórica e que cultivemos uma espessura de tempo que ultrapasse o imediato, a profundidade rasa dos planos de marketing e das projeções de crescimento econômico.
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BAUDRILLARD, Jean. 23 – O complô da arte. In: Tela Total: mito e ironias do virtual e da imagem. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997. pág. 136 – 139.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 259 p.
________. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 272 p.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, e que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. 264 p.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Ática, 2006. 431 p.
MAMMI, Lorenzo. O que resta: arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 380 p.
STEINBERG, Leo. A arte e a situação de seu público. In: Outros Critérios. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 21 – 37.