Organóides
Organóides
As esculturas, pinturas e desenhos de Carlos Januário são derivados de elementos visuais dos quadrinhos, que comumente representam nuvens, fumaça, luzes ou superpoderes. Quase sempre ocorrências que, senão imateriais, são impalpáveis, fluidas e fugidias. Todavia, a representação desses eventos nos quadrinhos pode ser esquemática. Tais elementos por vezes tomam formas que se assemelham a outros recursos gráficos que fazem parte de um padrão - mais ou menos rígido - comum à grande parte da banda desenhada: como as onomatopéias e os balões. Além disso, estes elementos visuais não escapam do modo de representação tradicionalmente associado à arte sequencial mais popular: composto de contornos rígidos e áreas completamente delineadas.
Mas esses elementos não comparecem efetivamente como formas apropriadas nos trabalhos de Carlos Januário: são antes a origem do seu processo. Assim, surgem na sua produção como uma espécie de humor de fundo: concedendo as suas peças certa organicidade sugerida, bem como um caráter esquemático subjacente e uma atmosfera familiar, pois provocam imediata aproximação com um vocabulário visual disseminado na cultura pop. Já a função de representar ocorrências impalpáveis e imateriais se perde, pois no processo poético do artista ocorre um tipo de corporificação dos elementos gráficos dos quadrinhos. De modo que as peças se relacionam com elementos fluídos apenas através de uma dimensão icônica.
A dimensão indeterminada do orgânico nas peças de Januário - não há representação de um organismo reconhecível - abre espaço para a antropomorfização dos volumes: esse reconhecimento estranhado concede um sútil semblante surrealista aos seus trabalhos. O artista contrapõe ainda a este semblante surrealista e orgânico, bem como ao caráter esquemático em tensão com ele, ações disruptivas que escapam à ambos. Essas ações estão presentes nas duas peças maiores aqui expostas e de
duas formas diferentes: em forma de projeção de imagens virtuais sobre a peça escultórica cinza, quando então remete a uma relação corriqueira e banal com totens de informação e telas luminosas; e em forma de uma camada pictórica pincelada sobre a superfície da peça azul, que quebra o caráter impessoal da pintura com o aerógrafo.
Essas ações de segunda ordem somam-se a outras referências que os trabalhos evocam: os quadrinhos, a arte pop, e o surrealismo. Cada um desses aspectos amplia os trabalhos de Januário, dando-nos a certeza que eles não podem ser abordados como volumes autônomos de sentido ensimesmado, mas antes como meios de engajar uma paisagem cultural mais ampla.
À parte do mundo da vida ou indiferenciado dele. Este tem sido um dilema que divide e ocupa artistas desde as vanguardas históricas. Nesse cenário a escultura contemporânea encontra-se deslocada da lógica do monumento [seu lugar tradicional, como apontou Rosalind Krauss] e aproximada dos objetos comuns. Todavia, já não se sabe se é possível pensá-la como uma categoria negativa - como uma dupla negação, tanto da paisagem, quanto do monumento, como pensou Krauss. Hoje, muitos trabalhos de arte que convocam o conceito de escultura, quando não claramente relacionados à lugares específicos, encontram sucesso mediante ambiguidades e camadas sucessivas de significados incompatíveis entre si, o que não implica necessariamente em uma conjuração de um lugar negativo.
Carlos Januário, ao realizar sobre as suas peças ações deslocadas da lógica escultórica tradicional, produz operações poéticas que conduzem a ambiguidade entre escultura e a condição de suporte da pintura ou da imagem. A transformação do pedestal em parte da escultura também produz uma ambiguidade entre suporte e peça suportada. Essas ambiguidades são de uma só ordem: entre a presença do volume como foco da nossa atenção e sua presença como suporte de outro ponto de interesse. Esse jogo incerto é importante na obra de Januário, sobretudo porque produz um tipo de experiência que costuma ser negada pelo mundo contemporâneo; pois a regra na exposição de mercadorias é o consenso e a clareza, isto é: a clara distinção entre suporte e conteúdo.
Em vez disso os trabalhos de Januário tem uma vocação para o dissenso e para o estranhamento. Se por acaso resvalam na direção do mundo da vida, também mantém uma ambiguidade em relação a este mundo, ao mesmo tempo em que se agarram à história da atividade artística. As tensões que se esboçam nos trabalhos desta exposição - batizados pelo artista de “Organóides” - parecem nascer dessas passagens, e muito embora contenham alguma timidez, e ainda algo de frouxo, demonstram inadvertidamente potencial e espaço para o desenvolvimento de uma arte nos seus próprios termos, sem contudo buscar exílio do mundo.