Índices da imagem
Índices da imagem
No nosso tempo o caráter indicial da fotografia afrouxou-se, em grande medida, devido ao modo como a imagem fotográfica foi manipulada no decorrer da sua história. Com efeito, a fotografia sempre envolveu uma elaboração do real: a fotografia em preto e branco colorida à mão, a construção de uma cena para a fotografia em estúdio, a montagem fotográfica, e até mesmo a revelação e as variáveis ajustadas na própria câmera fotográfica não são senão formas de manipulação. Diretas ou analógicas, as elaborações citadas envolvem um conjunto de saberes específicos. Já a manipulação da imagem digital atual, no seu âmbito comum, exige pouco ou nenhum conhecimento especializado.
A produção digital da imagem fotográfica e a automação da manipulação dessa imagem impõem uma interface mais espessa entre a imagem e o seu referente, e entre a ação e o seu resultado. O digital é o triunfo do dedo. Ao click da fotográfica sucede o click do mouse e o slide dos smartfones; à manualidade da revelação contrapõe-se a instantaneidade da aplicação de um filtro predefinido. Na sua forma mais banal, a fotografia contemporânea é o triunfo do kitsch sobre o engenho, isto é: o triunfo do efeito pronto aplicado sobre a elaboração mediante um saber. Por um lado, este desenvolvimento problemático da fotografia é um aprofundamento de uma característica do substrato técnico dessa linguagem, uma dialética olho-dedo em parte definiu o ato fotográfico moderno. Por outro lado, essa mesma digitalização exclui, na medida em que nos revela, um segundo ato fotográfico irredutível na forma analógica da fotografia: o ato de revelação e a sua dialética mão-olho.
Nani Silveira. Micropaisagem II, 2019. Fotografia digital s/papel algodão, 50 x 40 cm
O trabalho de Nani Silveira nos endereça a estas questões, pois é realizado com a câmera do seu celular e a partir da manipulação da imagem, inclusive através da aplicação de filtros digitais pré-definidos. O seu fazer aponta para pelo menos três substituições: da sala escura pela tela luminosa; do álbum físico pelo álbum digital; e da dialética mão-olho no instante irreversível da revelação pela dinâmica infinitamente reversível olho-dedo, relativa tanto a edição da imagem digital, quanto a sua visualização.
Ao mesmo tempo, para todos os seus trabalhos a artista impõe o imperativo da concretização. Isto é, da passagem do meio digital para o meio impresso. O que exige a definição de uma forma de exibição de cada imagem, e a consequente tomada de uma série de decisões relativas à escala, formato, tipo de impressão, suporte e acabamento do objeto.
Assim, ao passo que os seus trabalhos nos fazem refletir sobre a mudança no estatuto da fotografia a partir da sua digitalização, eles também demonstram que entre fotografia e outros meios de produção de imagens há menos distância do que se supõe. Ou seja, o gênero e o grau do índice de uma imagem fotográfica não são fundamentalmente diferentes em comparação com imagens construídas em outras linguagens. Pois o índice de uma imagem é relativo ao processo da sua produção. Neste processo de produção também está compreendida uma distância entre a imagem que dele resulta e o seu referente. Índice e distância correspondem ao nível de opacidade do meio de produção dessa imagem.
Nani Silveira. Matéria Matriz II, 2019. Fotografia s/papel Hahnemuhle, 60 x 30 cm.
O interesse acerca das imagens fotográficas apresentadas por Nani Silveira nesta exposição - não obstante a utilização de um expediente kitsch do filtro e do fato de que suas fotografias são em parte obtidas e elaboradas por processos digitais - surge da vocação de índice dessas imagens. Ou mais precisamente de uma sensação de realidade que elas podem provocar. Essa sensação de realidade está, contudo, relacionada menos ao referente das imagens, e muito mais ao modo como as imagens são manipuladas e apresentadas pela artista. O resultado é que essas imagens imitam a aparência resultante de processos de outros meios, como a gravura, o desenho e a escultura. Linguagens essas cuja espessura material, isto é, a opacidade intrínseca ao meio, é historicamente, mais acentuada que a da fotografia e que, portanto, apresentam indícios mais diretos dos procedimentos geradores da imagem.
É por mímica de indícios de processos de outras linguagens que surge a sensação de realidade desses trabalhos. Nos melhores casos, essa operação não se localiza apenas na imitação da aparência de um resultado técnico, mas no entrelaçamento entre a elaboração da imagem fotográfica e convenções de outras linguagens. Desse ponto, cabe propor uma questão mais profunda: em que medida tal entrelaçamento de convenções pode produzir novos significados e apresentar questões pertinentes? Esta pergunta está na ordem do dia, e perpassa os trabalhos de Nani Silveira. Cabe à artista respondê-la, ainda que provisoriamente.